Racismo ou vitimismo? A importância dos movimentos antirracistas, com Goleiro Aranha

 No Novembro Negro, o ex-futebolista conversou com a comunidade oswaldiana sobre esporte e movimentos antirracistas.

Na foto, o ex-goleiro Mário Aranha no evento “Racismo ou vitimismo? A importância dos movimentos antirracistas”, no Teatro Oswald. (Fotografia por: Jéssica Amaral)

O Programa Origens visa ampliar a discussão e o letramento de toda a nossa comunidade em torno do antirracismo. Por este motivo, no Novembro Negro, realizamos um evento em que o ex-goleiro Aranha – autor dos livros “Brasil Tumbeiro” e “José do Patrocínio”, publicados pela Editora Mostarda – conversou com a comunidade oswaldiana sobre a temática Racismo ou vitimismo? A importância dos movimentos antirracistas”

Ao longo do encontro, o ex-futebolista conversou sobre a sua relação com o esporte ao mesmo tempo que soube calibrar a importância do combate ao racismo dentro e fora de campo. A conversa foi uma rica troca de experiências entre o ex-jogador de futebol e todos que compareceram ao evento: crianças e jovens que estudam no colégio, educadores e demais membros da comunidade oswaldiana.

Mário Aranha conseguiu trazer bom-humor e leveza, assim como didática e seriedade ao abordar um assunto tão delicado quanto o racismo. Ele contou a sua história no futebol e relatou como o racismo foi obstáculo em sua carreira, tanto no começo quanto após o seu reconhecimento. Além disso, relatou momentos de sua vida pessoal em que, desde a infância, o racismo o afetou (e afeta), tanto em questões práticas quanto em sua autoestima. Por este motivo, visando trazer mais visibilidade à história de pessoas negras que são referências no Brasil, escreveu no livro “Brasil Tumbeiro”.

Confira as perguntas feitas pelos estudantes durante o encontro! 

Eu queria saber por que te chamam de Aranha?
Uma ótima pergunta, que dá pra encaixar com o assunto. Por que hoje não tem mais apelido no futebol? Porque lá na Europa eles criaram uma regra: quem tem passaporte europeu não ocupa vaga de estrangeiro. Então, você pode ter 10 brasileiros lá no time, desde que eles tenham o passaporte europeu, a ascendência. O negro não tem essa ascendência. O africano tem o passaporte africano, que abre portas. Então, o que acontece? Se o menino tá lá e coloca o nome, o sobrenome italiano, alemão, holandês, ou seja o que for, o empresário, o treinador, o diretor do clube vê o menino jogando bem com aquele sobrenome ele fala “Opa! Tá aí uma boa oportunidade de mercado”. Daí, todo mundo começou a [usar sobrenome europeu], tem até “negão” com sobrenome italiano… Onde que arrumou isso aí? Sobrenome alemão? Tentando!

E, aí, na minha época era apelido. O bom era quem tinha apelido legal. Na minha cidade, tinha um treinador que colocava apelido em todo mundo, se chutava forte o apelido era “Pedrada” (tinha uns 15 “Pedrada”). Ai, ele ligava lá no time e falava “Ó, tem um jogador aqui, o Marcelo, mas ninguém conhece como Marcelo aqui. Porque ele é tão rápido, que o apelido dele é “Flash” aqui!”. Aí, os goleiros eram “Aranha”, porque pareciam ter um monte de braços: “Ó, tem um goleiro aqui que o nome dele é ‘Aranha’, o apelido dele é ‘Aranha’, porque tem vários braços e tal…”. Aí o pessoal acreditava e falava: “Quero ver essa ‘Aranha’, se tem esse tanto de braço mesmo…”. Foi isso, foi estratégia de marketing. Naquela época, nem sei se existia esse nome, “marketing”.

Mesmo depois de você jogar na “elite do futebol”, o racismo ainda é muito constante?
Sim, porque eu posso ganhar o dinheiro que for, ganhar o título que for e isso não vai mudar a minha cor. Nós já passamos, como família, por muitas situações, morando em lugares muito caros, imóveis muito caros. Eu passo hoje… Eu moro numa região muito boa da minha cidade e, por ser uma região plana, todo mundo faz caminhada ali, “os dinossauros” todos fazem caminhada ali, saem da tumba e fazem caminhada. E aí eu falei “Também vou caminhar, tô precisando. Comi muito McDonald’s”. Aí eu tô caminhando e o pessoal troca de calçada. Às vezes, o pessoal tá conversando e sabe quando você vai se despedir da pessoa, quando o carro tá do lado de fora e o portão tá aberto? Você vê que bate um desespero na pessoa, porque o portão tá aberto: “Então, tá bom. Então tá bom”, aí o outro já entra, já tranca o portão. Já aconteceu de eu estar vindo caminhando e a pessoa estar abrindo a garagem, me ver, fecha o portão de novo e sai com o carro… Então, eu vou passando por várias experiências e só volto chateado pra casa, porque algumas vezes a pessoa sabe quem é o Aranha, tá com a camisa do Santos, tá com a camisa do Atlético Mineiro, sabe quem sou eu… Mas é o momento da pessoa se sentir superior a mim, de me ferir: “Fazendo isso, eu vou por ele no lugar dele”.

Queria saber a sua opinião em relação ao que vem acontecendo com Vinicius Junior, de ridicularização que ele tem sofrido? E, como as pessoas conseguem ser racistas hoje, mesmo o melhor jogador do esporte sendo negro?
Primeiro que, assim, tá muito legal, Vinicius Junior é o representante contra o racismo, é um heroi porque o Real Madrid tá ganhando…Tá dando tudo certo, quero ver na hora que as coisas começarem a dar errado, que o Real Madrid perder título, que ele parar de fazer gol… Na seleção mesmo, ele já é muito criticado, porque ele “não tá ajudando a gente”. Mas, no Real Madrid, quando as coisas não acontecerem, pode ter certeza que o peso vai ser maior, eles vão tentar dispensar ele o mais rápido possível, porque ele virou um problema. Então, é sempre muito complicado falar sobre racismo, porque sempre têm consequências depois. Você nunca vai falar e vai ficar por isso mesmo, sempre vai rolar uma retaliação depois.

Talvez seja um pouco pesado, mas se você tivesse a opção de trocar de cor, você trocaria?
Hoje, não, porque já sou um “dinossauro” bravo, grandão e tal. Agora tá bom, beleza, consigo aguentar. Mas, na infância, depois daquele negócio que eu passei com a minha “ex-namoradinha”, que eu não namorei, eu pensei muitas vezes. Quando eu fui dispensado de clube… Tinha uma época que eu só andava na sombra, eu ia pra escola a pé e só ia na sombra. Se tivesse um pedacinho de sombra eu ia assim [espremendo-se]. Eu falava assim: “Quem sabe se eu não andar no sol, eu vou ficar mais claro? Se eu ficar mais claro, as coisas vão ser melhores pra mim”. Então, eu já desejei muito ser branco.

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Queria saber qual o seu sentimento vindo aqui, numa plateia majoritariamente branca, depois de tudo o que você passou, vir aqui e ver que realmente a representatividade negra é quase nula nesses ambientes mais “sofisticados”?
Bom, eu faço esse tipo de coisa desde 2004, muita gente acha que eu comecei a falar depois do episódio do Grêmio, mas desde 2004 eu faço isso. Eu vou em colégio particular, colégio público. A cada colégio particular que eu vou, consigo ir em dois ou três públicos, voluntário. Mas, eu faço muito empresa, caso de menor infrator, cadeia, presídio, ONG, tudo que é lugar… Eu vou em muito, muito lugar. Minha família tá comigo hoje porque tem duas semanas quase que eu não paro em casa, rodando. Mas é um ponto muito importante, porque tirando o continente africano, o Brasil é o país que mais tem negro no mundo, né. E você vai num restaurante, se você olha para os lados, você não vê pessoas negras, a não ser com a bandeja na mão ou na cozinha… Quando eu faço palestra nas empresas, eu sempre faço uma reflexão: “Quando vocês recebem o salário de vocês, em que momento esse dinheiro vai pra mão de uma pessoa negra? É no dono da loja de carros? Na padaria, no açougue? Da casa que você comprou? Em qual momento?”. Aí eu falo que não vale esmola e nem o manobrista. Então, a gente fala: cadê esse povo? Onde é que anda esse povo? É um fenômeno muito interessante. Por isso que eu fiz o “Brasil Tumbeiro” (Editora Mostarda) – não só pros negros, mas também para as pessoas brancas e pobres, também nas periferias – [para] mostrar que existem outras pessoas, que existe um outro caminho que não só o futebol e a música. Na época da escravidão, que era o pior período pra ser negro, tinha engenheiro, médico, advogado…Tinha de tudo. Se a gente não tivesse perdido essas referências, hoje nós teríamos um país melhor pra todo mundo. Como é que a gente quer viver num país melhor se metade da população tem que ser puxada por vocês, por nós que estamos aqui. A gente [pessoas negras] fica arrastando corrente? Não, a gente tem que dar condições melhores para todo mundo, igualdade de oportunidades. O movimento negro, a luta antirracista nunca fala de supeioridade, mas igualdade de oportunidade. Não é tirar nada de ninguém e dar pra mim, é pedir pela mesma chance de oportunidade. Mas, estar nesses ambientes, pra mim, é um momento de muita satisfação, porque têm pessoas preocupadas em melhorar não só o ambiente familiar, mas melhorar o país. […] Eu vejo uma preocupação real, porque os meus meninos passaram por isso, minha família passa por isso. Às vezes, a gente tá morando num condomínio, num lugar que não tem pessoas negras e acha que tá tudo bem, só que uma hora vão ter que sair do casulo, ir pra rua.

Tem uns meninos de Valinhos que cometeram um vacilo, um erro, um crime que dificilmente eles vão estudar aqui no Brasil, porque a fama chega antes. Aonde eles chegarem, vão ser os meninos racistas; qualquer brincadeira, qualquer gesto já é suspeito. Então, olha o prejuízo, porque todos os alunos que estão aqui e, depois na faculdade, é um investimento no futuro. Você imagina os pais das meninas que fizeram bullying com aquela moça de 40 anos, na faculdade. Pagou escola particular a vida inteira, faculdade e na “hora H” faz uma piada de mau-gosto que não cabe mais? Encerrou pra ela no Brasil. Não tem mais batizado, festa, aniversário, missa, culto, colégio, ela fica sem lugar. Então, a gente tem que ter muito cuidado, hoje, para as pessoas verem com naturalidade e não ter problemas. Não é fácil, mas tem que ter um começo. Não existe uma maneira de resolver um problema sem falar sobre ele primeiro.

Você ainda sofre atos de racismo hoje em dia?
Sim, bastante. Muitas e muitas vezes, andando numa rua, andando numa loja. E o que me deixa triste é que, às vezes, a pessoa me conhece e quer me ferir. Mas me deixa muito triste que, às vezes a pessoa não me reconhece, me trata super mal, aí depois que vê que é o Aranha, me trata super bem, exageradamente.

Você se importaria de contar o que aconteceu no jogo do Grêmio?
Não. Eu fui fazer uma decisão de Copa do Brasil, Santos x Grêmio, em Porto Alegre e desde 2004 faço esse tipo de coisa [palestras]. Sempre fui um cara do movimento Hip Hop, sempre fui atento a esse tipo de coisa, política, movimentos sociais e tudo mais. Já tinham acontecido vários episódios e eu estava no jogo do Grêmio, passando para o mundo inteiro, o time ganhando de 2×0 e eu comecei a ouvir um som e eu falei “Caramba? Será que é isso mesmo que eu tô pensando?” e eu comecei a prestar mais atenção […]. Eu virei pros repórteres e perguntei: “É isso mesmo que eu estou ouvindo? É som de macaco?”, eles não falavam nada. Nisso que eu tava falando com um repórter, eu vi uma galera me xingando e falei “Cara, filma isso”, porque eu sabia que eu tinha que ter provas, porque eu já vou falar de um episódio que aconteceu comigo e não teve provas, então… Eu falava “filma, filma” e ninguém queria filmar, ninguém virava a câmera e eu pensava: “Imagina só os meus amigos do RAP, meus amigos de periferia, as pessoas que eu conheço, todo mundo me vendo passar por isso e eu em silêncio?”. E eu fiquei pensando nisso – e o time do Santos era muito bom na época, a gente ganhando de 2×0 –, o jogo rolando e eu pensando no que eu ia fazer, e eu pensei: “Já sei, vou falar com o juiz. Eu falo com o juíz, ele fala: gente, vamos parar com esse canto. Eu fiz a minha parte, ele faz a dele”. Quando eu falei com o juiz, ele falou: “volta pro gol, que eu vou te dar um cartão agora”. Eu voltei pro gol e a galera comemorou: “Tá liberado! Aqui, é assim mesmo!”. E, aí, intensificaram-se os xingamentos. E nessas horas que uma TV de fora pegou um grupinho, mas eu seria incapaz de ouvir 8 pessoas num estádio com 40 mil pessoas, pegaram aquela galerinha, a menina xingando, que foi na onda dos amiguinhos […] e a menina que tinha menos a ver com a história, acompanhou a galera, me chamou de macaco, a câmera pegou ela “certinho” e o negócio foi para o mundo inteiro. Hoje, eu não sei nem como ela vive, se ela vive, porque ela não tem mais paz em lugar nenhum. E, até hoje, o pessoal do Grêmio tenta provar que a culpa é minha, que eu provoquei os torcedores. Uma semana depois teve um segundo jogo e foi empate, mas o torcedor do Grêmio até hoje fica chateado comigo, achando que eu desclassifiquei o time. E eu passo muitos episódios ruins com torcedores do Grêmio até hoje, por conta desse jogo, desse episódio. Eu fiz uma matéria e a TV foi investigar a torcida do Grêmio “Como é que vai ser no segundo jogo? Como será que vai ser?”, o Grêmio colocou três câmeras só pra me filmar, pra pegar um gesto meu suspeito. E a torcida do Grêmio estava discutindo no grupo do WhatsApp, do Facebook “Como é que nós vamos atacar o Aranha sem usar palavras racistas?”. Eu ouvia de tudo: bola de neve, ursão… Eu ouvi de tudo! Aí eles começaram a vaiar, ficaram o jogo inteiro me vaiando, acharam que o melhor jeito era me vaiar, ao invés de me xingar. Toda vez que eu pegava na bola era uma vaia muito pesada. Isso mostra que eles estavam convenientes com aquela situação racista que tava acontecendo. 

O que você acha que a gente podia fazer diferente nas escolas para que não aconteça o que aconteceu com você quando era criança?
Eu também falo muito nas escolas sobre bullying e cabe no mesmo “cesto” do racismo. A gente quer ser respeitado e, muitas vezes, a gente não respeita as pessoas. E eu não acredito na galera mais velha, de mudar alguma coisa. Eu acredito na “rapaziadinha”, nos jovens, que vão crescer com uma mentalidade um pouco mais diferente da nossa. O racista – não só o racista, mas o violento, o cara que pratica bullying, esse cara (esse mau-elemento) –, ele precisa de duas coisas pra interagir: se sentir seguro e confortável para poder agir. Confortável no sentido de que ele vai praticar a violência dele e ninguém vai criticar, vão dar risada de estar junto, vai ficar “grandão”. E seguro, no sentido de acreditar que ninguém vai tomar uma atitude violenta contra ele.

Eu fui num jogo no Estádio de São Januário, no campo do Vasco, que fica na favela e deveria ter uns 20 ou 25 mil negros no estádio. Você imagina o camarada levantar no meio da torcida com 10 mil negros em vola pra chamar alguém de macaco? Os caras vão arremessar ele dentro do campo. Então, ele não vai fazer isso, o “valentão” sempre vai escolher o melhor momento, em que ele vai estar confortável e seguro para fazer seu ato de violência. 

Então, quando a gente tira essa segurança e esse conforto do racista, do violento, da pessoa que tem essa mania ruim, ela para de agir. E como é isso? Tão tirando sarro de um cara porque ele é gordinho que nem eu, é só não abraçar a ideia. Não ri, sai de perto! Fala “Cara, você quer fazer isso? Você não pode ser meu amigo”. Então, a gente tem que ensinar as pessoas a respeitarem as outras. Acho que um dos maiores problemas que a gente tem no nosso país diz respeito a educação, não a escolar, mas de respeitar o próximo. Se você respeita as pessoas do mesmo jeito que você quer ser respeitado, você não vai ter racismo, não vai ter homofobia, gordofobia, nem nada disso. Só respeito. É bem simples. Parece muito simples, mas no futebol a gente chama de “laranja podre”, que vai estragando o grupo. Eu gravei pro Profissão Repórter uma vez, lá em 2017, e a polícia federal fez um levantamento de que existem cerca de 150 grupos nazistas em atividade no Brasil e, hoje, nós estamos chegando em 300. Quer dizer, a outra turma tá se movimentando, tá crescendo. Então, se a gente não criar um movimento contrário, eles só vão crescer e influenciar cada vez mais. A gente já viu fazerem ataques em escolas, estamos preocupados com as crianças nas escolas, porque uma hora a violência chega na nossa porta.

Confira o vídeo na íntegra em nosso canal do YouTube!

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