Moderno eterno

Por Evandro Camperom, professor de Língua Portuguesa do Oswald. 

A Semana de Arte Moderna de 1922, vivamente rememorada nestes 100 anos de sua realização, saltara definitivamente do calendário (e dos manuais escolares) para as páginas dos jornais e das revistas de cultura. Ganhara a arena digital e tem sido objeto de análise de parte expressiva da opinião pública, bem como de artistas e intelectuais dos mais variados campos de atuação, com fervoroso interesse. 

Acendem-se novas e velhas querelas, ranhuras se acentuam, incongruências se explicitam, no instante em que se recompõem as pegadas da modernidade, do modernismo e, consequentemente, da Semana assinalada, agora rediviva. Pensar a Semana de Arte Moderna de 1922 nos impele a interrogar o sentido da modernidade aqui no subúrbio do ocidente, onde as veredas se bifurcam e a luz solar arromba as retinas.

Modernizar o Brasil, concomitantemente, significa um esforço de atualização e uma afirmação de nossa perpétua defasagem de província periférica ante a metrópole. A Semana de Arte Moderna de 1922 não deixa de ser índice de um impulso civilizatório meio basbaque diante da parafernália tecnofuturista, mas que enseja forjar uma certa imagem de altivez singularizada, ao enxergar grandeza em nossa multiplicidade étnica e cultural a partir da idealização dos povos originários e da cultura popular da época: Tupis tangendo alaúdes¹. 

É notável o esforço de depuração crítica a que a interpretação hegemônica da Semana vem sendo submetida. Delinear seus limites, denunciar suas distorções, e, ainda, localizar suas fagulhas vivas é também, em certa medida, vislumbrar as fissuras e potencialidades de nossa aventura civilizatória. Acertar a cadência desse samba do europeu doido chamado Brasil moderno.

“E como ficou chato ser moderno. / Agora serei eterno”², escrevera Drummond, nossa máquina do mundo. Um dos muitos artistas tributários dos transbordamentos estancados em 1922. Efeito este que anularia a hipótese de que as reverberações do primeiro modernismo brasileiro seriam uma criação artificial, sem lastro real,  o que nos obrigaria  a classificar como cúmplices de uma farsa provinciana, ingênuos cooptados pela bajulação fácil, artistas como Manuel Bandeira, Murilo Mendes, os concretistas, os tropicalistas… Pensadores como Eduardo Viveiros de Castro etc.

As reavaliações do modernismo brasileiro têm insistido, com razão, em destacar a arbitrariedade dos universalismos de superfície característicos de sua recepção nos últimos cinquenta anos. Questiona-se a não correspondência entre a materialidade do evento – alegorizada na imagem de uma semana de três dias, de expressão tímida e reverberação difusa – e a dimensão mítica que o modernismo passou a gozar, após os primeiros revisionismos, decantações e projeções direcionados à Semana. Dimensão mítica esta que parece nos ter ofertado o fôlego de sonharmos nossos próprios fantasmas, e sublimá-los em nossa própria língua. Natural e neológica. Como falamos. Como somos, oswaldianamente³. Com tudo que há de manifesto e latente nos sonhos, diga-se.

Ao ponderarmos de maneira mais precisa o quilate histórico dos modernistas, negaríamos, necessariamente, o ímpeto deflagrador de novas formas de representação e reflexão crítica dele derivado?

Exigir, inflexivelmente, rigor histórico e programático ao que orbita em atmosfera também mitológica nos leva a impasses à beira da tautologia: o mito – palavra dilacerada pelo reacionarismo tacanho de nossos dias – não se revela em processos históricos porque se orienta pela metamorfose, não pela fricção dialética⁴. O mito pertence ao campo das inconsequências visionárias. Não obstante, o mito modernista não pode estar infenso a críticas, o que nos espanta é a mobilização, no campo da elaboração ficcional, de elementos alheios a ela: parece que às vezes esperamos das artes a revelação, e resolução, quase messiânica, de nossas distorções sociais.

Questiona-se o defeito de origem que o patrocínio das oligarquias paulistas imprimira ao movimento. Haveria uma mancha de café – ou sangue negro? – indelével sobre cada letra impressa daquela geração. Contesta-se o elitismo delirante que teria inflacionado a densidade artística da literatura modernista num país de letramento médio tão baixo como éramos há um século – e como seguimos sendo, tragicamente… Aqui se desvela um nó que se engruvinha entre a representatividade e a representação. 

A palavra “representação” assumiu entre nós uma centralidade que nem sempre contribui para a compreensão da expressão literária: tanto no campo da produção quanto no campo da recepção, bem como da crítica literária e cultural, representação e representatividade ensaiam uma sinonímia paralisante. Parecem embaralhar-se as fronteiras entre as formas de representação, os sujeitos representantes e os sujeitos/objetos representados, ou o que é ainda pior: imagina-se que nalgum momento essas fronteiras puderam (ou poderão) ser delimitadas politicamente, de modo impermeável, sem que se nos escapasse o sopro da imaginação ficcional que, nas artes, modula e amplia nossas formas de ver, ouvir, sentir, revelar.

O fato de o Brasil, historicamente, ter se conformado numa civilização à margem da palavra escrita anularia a legitimidade – e a legibilidade – das representações expressas em nossas obras? Assumiríamos, assim, que nosso baixo letramento médio nos condenaria a buscar a compreensão do Brasil em qualquer campo de expressão que não sejam os livros. Numa espécie de tiroteio entre cegos, a indiferença dos modernistas de 1922 em relação à cultura urbana popular justificaria a nossa em relação ao que ali se produziu para além das intenções programáticas declaradas naquela ocasião. E tiro final. 

Talvez coubesse a nós investigar até que ponto a não representatividade evidente de amplas parcelas de nossa população no âmbito da produção de nossa literatura oficial (ausência quase absoluta de negros, índios e dos mais pobres, de forma geral – fato concreto e incontornável em nosso périplo da experiência colonial à inserção no capitalismo dependente) anula a possibilidade de representação da literatura brasileira. Noutras palavras, o espelho nos inquiriria se a literatura produzida num país de desigualdades extremas seria responsável pela manutenção dessas desigualdades, tão somente. Ao invés de alumbramento, mascaramento. Sob essa perspectiva, estaríamos condenados a pensar o gesto artístico não como uma expressão sensível de novas formas de conhecer, mas como um dispositivo retroalimentador de se reconhecer.

É certo que o sistema literário brasileiro – escritores, editoras, críticos, leitores – de tempos em tempos redescobre o Brasil, de Os Sertões a Vidas Secas, passando por Quarto de despejo, Cidade de Deus, Sobrevivendo no inferno e, mais recentemente, Torto Arado, o “Brasil profundo” de vez em quando ressurge na consciência dos letrados brasileiros. Mais do que revelar atenção e sensibilidade estética e social, esses impulsos são o atestado de nossa cegueira atávica, ancorada numa maquinaria hiper-eficaz de produzir invisibilidades. Como se pudéssemos ser sem aparecer. Deste modo, de tempos em tempos, reconhecemos o Brasil que jamais ousamos transformar. 

Em certa medida acusa-se os modernistas de pensar que pensavam o Brasil profundo. De pensar que viam a profundeza do abismo. Um Brasil que só poderia ser mirado de baixo para cima. Conhecido somente por quem nele se reconhece ou por quem veria nele algo a se reconhecer.  

Poderíamos supor que a Semana de 1922 ambicionara criar um novo Brasil e que esse filho rebelde se lhe escapou das mãos. Se povos, somos múltiplos, modernismos múltiplos fomos também capazes de gerar, portanto. Jamais haverá semana que nos baste.  

Sob a aridez destes tempos répteis, é bom que recordemos que aquele modernismo de 1922 um dia sonhou um país entre a floresta e a escola. Um país da floresta e da escola. Um Brasil para a floresta e para a escola. O teatro de nosso tempo encena a peleja entre um país a se inventar e um país a se inventariar.  

100 anos depois, a Semana de Arte Moderna de 1922 ascende no horizonte, ora como Ci, a mãe do mato, virada em estrela, alumiando caminhos, ora como a estátua de Borba Gato em plena combustão, riscando no céu dos trópicos nosso mais claro enigma: sob qual máscara retornará o recalcado? 

Moderno eterno moderno. 

Eterno, mas até quando?

Notas:
¹ Referência ao poema O trovador, de Mário de Andrade publicado em Pauliceia Desvairada.
² Referência ao poema Eterno, de Carlos Drummond de Andrade. Antologia poética, Editora Record.
³ Referência ao Manifesto da Poesia Pau Brasil, de Oswald de Andrade.
 VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Metafísicas canibais: Elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo: Cosac Naify, 2015.

5 1 vote
Article Rating