Conversa com Jamil Chade
Na segunda-feira, 18 de junho, os estudantes do Oswald puderam conversar com o jornalista internacional sobre fluxos migratórios, refugiados e democracia.
Na segunda-feira, 18 de junho, os estudantes da UCA “Migrações Internacionais na Atualidade”, sob a orientação da professora Cinthia, tiveram a oportunidade de trocar conhecimentos com o jornalista Jamil Chade. Em sua fala inicial, o convidado explicou que apesar da intensidade atual, o fluxo migratório não é um fenômeno restrito à contemporaneidade. E apontou que a história das migrações e dos refugiados é intrínseca à própria história da humanidade.
Até maio deste ano, segundo a ONU, existiam 120 milhões de refugiados ao longo do planeta, o maior número da história, o que indica uma crise humanitária. Ao contrário do senso comum, os principais destinos dos refugiados não são os países mais ricos, mas aqueles que estão em desenvolvimento, geralmente em virtude das fronteiras geográficas. A conversa foi norteada por importantes questionamentos, como investigar os motivos que levam essas pessoas a buscarem refúgio e quais são as situações sócio-políticas desses países.
Confira as perguntas feitas pelos estudantes durante o encontro!
Em seu livro “10 histórias para entender um mundo caótico”, você diz que a miséria não é uma fatalidade, que quem morre de fome no mundo, hoje, morre assassinado. O que você quer dizer com isso? Qual a dimensão desse enorme problema?
Ótima pergunta. Porque eu digo que não é uma fatalidade, porque olha só o que aconteceu… A gente fala “Não, mas erradicar a pobreza deve ser muito difícil, deve custar muito dinheiro erradicar a pobreza no mundo”; quer dizer, é claro que é difícil, tanto que a história está aí mostrando que estamos há 2024 anos, pelo menos, só depois de Cristo, lutando contra a pobreza. Sem contar com os milhares de anos anteriores, e ela não consegue ser erradicada. Mas, por que eu digo isso [a miséria não é uma fatalidade]? Porque o mundo tem recursos para erradicar a pobreza. Então, vamos só olhar para o gasto: o mundo gastou, em 2023, 2 trilhões e 500 bilhões de dólares em armas; em português, isso dá mais de 10 trilhões de reais. É muito dinheiro. Mas, será que é o suficiente para erradicar a pobreza? Se não é o suficiente para erradicar toda a pobreza, se a gente usasse um ano dos gastos em armas para erradicar a pobreza, a gente teria chegado muito perto de erradicar a pobreza. E aí os cálculos que são feitos mostram que, por exemplo, no caso de Jeffrey Sachs, que é um economista americano, ele fez um cálculo mostrando que, se no mundo a gente gastasse 140 bilhões de dólares por ano durante 20 anos para erradicar a pobreza, teríamos conseguido isso. 140 bilhões de dólares é claro que é muita grana, todos os anos durante 20 anos, muita grana, sem dúvida nenhuma. Mas só no ano passado o mundo gastou 100 bilhões de dólares só em armas nucleares. Então, calma só, 100 bilhões de dólares mais 40 bilhões, por anos, nós estaríamos livres. Então, não é uma fatalidade a existência e a continuação da pobreza. E, tão pouco é uma fatalidade a produção da desigualdade. Ela é o nosso sistema. O nosso sistema gera essa situação. Então, ela não é uma fatalidade nem em sua origem, nem na solução, que existe. Então, por que eu coloco esse tema? Pois às vezes nós colocamos esses temas como impossíveis. E eu não estou aqui para defender o sistema socialista chinês; inclusive, eu não poderia ser jornalista na China, eu seria preso se eu fosse o jornalista que eu sou lá. Não estou defendendo a China, mas olha o que ela fez: no espaço de 40 anos, eles conseguiram que a atual geração, a garotada de 15 anos, não tenha mais acesso visual ou da vida à pobreza. Olha só que incrível?! Pela primeira vez, na China, há uma geração que desconhece a pobreza. Então, é possível. Tem todos os outros debates e nós podemos fazer isso junto, mas existe, sim, essa possibilidade. Podemos dar aqui outros exemplos, a Noruega, por exemplo quando descobriu o petróleo passou de um país rural, inclusive com condições de pobreza, para um dos países mais ricos do mundo. “Ah, claro, mas descobriu petróleo. Resolveu!” Vai perguntar para outros [países], que descobriram o petróleo se resolveu. Não foi a descoberta de petróleo que resolveu a questão da pobreza na Noruega, foi a distribuição [de riqueza]. Então, não é uma fatalidade a existência da pobreza, é uma estrutura tanto na origem quanto na resposta.
Em suas coberturas de crises humanitárias ou de campos de refugiados, qual foi o momento ou situação que mais o impactou pessoalmente? Como essa experiência influenciou a forma como você aborda a cobertura jornalística dessas crises?
São várias. Tem uma que eu sempre lembro da parte, vamos dizer assim, visual. Eu estava acompanhando um grupo de refugiados, caminhando pela Sérvia e chegando na Hungria. E é curioso, porque os governos acham que se não derem transporte eles não vão chegar em lugar nenhum. Mas o que eles fazem? Andam. Se atrás de você tem a morte, o que você faz? Você anda. Atrás está a morte, a miséria. Atrás está meu filho que talvez não possa sobreviver. Então, eu ando!
Essas caravanas também existem pelos Estados Unidos, esse fluxo migratório pela Europa. Na Sérvia, eles decidiram: “nós não vamos colocar trens pra eles, senão vamos facilitar a migração.” Então, o que fizeram os refugiados? Eles falaram: “Bom, a linha de trem vai para algum lugar. Então, eu não posso me perder”. Eles falaram: “Esse trem vai para Budapeste, na Hungria”. Eles sabiam que aquela linha de trem ia pra algum lugar e que aquela linha de trem não iria circular, porque, claro, os trens não eram colocados para eles. Então, o que eles fizeram? Andaram pelo trilho do trem até chegar na Hungria. E, nesse percurso, eu vi uma imagem que eu acho que nunca vou esquecer na minha vida: uma senhora de muita idade, devia ter mais de 80 anos e estava numa cadeira de rodas. Ela estava de costas para o destino e a família a levava de espigão em espigão pelo trilho do trem. Você imagina o quanto é isso em termos de solavanco e eles foram empurrando, na verdade, puxando ela espigão por espigão. Imagina a cena. Uma cadeira de rodas, com uma senhora velhinha percorrendo o trilho de trem com alguém puxando – e eles se revezavam, né. E, claro, tinham os jovens, os mais velhos…E, pra mim, isso foi um choque. Eles vinham de longe e ainda continuariam por muitos dias. Eu olhava completamente espantado para eles. Um deles me viu e olhou pra mim, só falou uma palavra “family”. Vocês entenderam.
Na sua opinião, quais são as políticas públicas mais eficazes que você já viu em prática? O que você recomenda de práticas mais humanitárias e eficientes com os outros imigrantes?
Primeiro, não ter campo de refugiados! A integração dessas pessoas nas cidades é, talvez, um dos caminhos mais eficazes para integrar essas pessoas nas comunidades. Não criar bolsões, não criar guetos para essas populações. Eu já fui a muitos campos de refugiados, são lugares extremamente tristes, são lugares que depois de alguns anos viram extremamente violentos. Porque não há lei, não há polícia, não há governo, pois é uma sociedade como qualquer outra, há pessoas que vão querer se aproveitar, matar, roubar, estuprar… Tudo que tem numa cidade, tem num campo de refugiados. Imagina tudo isso sem lei, sem polícia, sem ordem, sem tribunal, sem justiça. Então, é extremamente complicado num campo de refugiados…
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Portanto, o primeiro passo é a integração, ou seja, fazer parte da cidade ou mesmo das cidades onde essas pessoas podem se distribuir. O segundo é que as crianças precisam ir para a escola; não escola de refugiados, elas precisam ser colocadas nas escolas recorrentes, do serviço público de educação daquele país, por exemplo. O terceiro passo é que os refugiados precisam receber atendimento médico. Por quê? Porque a saúde dela é a da comunidade. Então, você quer criar um ambiente mais tranquilo, com menos atrito entre a comunidade que atende o refugiado? O caminho é cuidando do refugiado, não excluindo, não marginalizando. Esse também é um ponto fundamental.
E, também, ter um plano econômico para eles. Ou seja, postos de trabalho ou pelo menos treinamentos, o ensino da língua daquele país. Do acolhimento, é isso: não marginalizar aquelas pessoas, porque isso vai ampliar o problema. Esse é o primeiro ponto.
Acima de tudo, é entender por que aquela pessoa está vindo. O que aconteceu naquele país de origem e o que “eu”, como país vizinho ou um país rico, posso ajudar na solução daquela crise original? Enquanto não houver uma solução naquela crise original, não vai haver a interrupção do fluxo migratório ou de refugiados. Então, não adianta a Europa ou os Estados Unidos falarem “Vamos construir muros”, sem lidar com o que acontece do outro lado do muro. Eu lembro do pai de uma família de refugiados, para quem eu perguntei: “e se tiver um muro lá?”. Ele falou: “Eu escalo o muro.”. E, eu falei: “E se o muro for muito grande?”. “Eu escalo o muro!”. Ou seja, nada ia parar ele, né. Claro, tá exagerando, porque obviamente há muros que ele não conseguiria escalar. Mas não adianta você colocar uma barreira quando atrás de mim tem a morte. Eu vou fazer de tudo. Eu vou cavar um túnel, se possível, pra chegar do outro lado.
Qual é o país que você visitou que melhor recebe refugiados? E qual o pior?
Difícil dizer, mas fiquei bastante impressionado com a Suécia. Eu fui visitar um centro e foi bastante impressionante ver a capacidade que eles tinham de acolhimento. Claro que existiam problemas, mas eu achei que tinha um plano, pelo menos, bastante humano para receber. Isso já faz uns 10 anos e, desde então, a Suécia passou a ter um governo cada vez mais de extrema-direita. Então, desconfio que talvez não seja mais a mesma situação hoje. Mas, naquele momento que eu fui, achei bastante impressionante por alguns motivos, mas o principal deles é porque existia um plano. O refugiado chegava em tal lugar, ele era atendido. Tinha crianças sozinhas, que não estavam acompanhadas pelos pais, e elas eram colocadas num abrigo separado: meninos de um lado; meninas de outro. Enfim, muito organizado, com muita estrutura e, claro, com muito dinheiro. Então, eu diria que achei isso bastante sólido, pelo menos na parte do acolhimento.
Um país que eu fiquei em choque foi a Hungria. Eu fui ver o local em que colocavam as pessoas e era completamente rodeado de arame farpado, seguranças ficavam rodeando o lugar com cachorros, como se lá dentro tivessem criminosos. Qual crime exatamente eles fizeram? Qual foi o crime que eles cometeram? Fugir da morte, é isso? E, claro, tinha uma política deliberada (e tem ainda) de dizer: “vocês não são bem-vindos aqui”. Era para assustar, desmoralizar, humilhar aquelas pessoas. Dizendo: “Vão procurar outro lugar”. Então, eles foram e são tratados como criminosos. Claro, existe uma ilegalidade em cruzar as fronteiras sem documentos, sem visto, tudo isso é verdade. Mas, será que eles são perigosos o suficiente para serem colocados numa prisão? Porque era nisso que eles estavam sendo colocados. Parecia um filme dos anos 1930 e 1940, com aqueles soldados muito altos, muito brancos, com cachorros latindo para aquelas pessoas que não estavam nem entendendo qual era o crime que eles tinham cometido. Então, pelo menos aqui da Europa, é isso. É óbvio que tem muitos outros lugares que a gente pode expandir, mas daqui são esses dois lugares que me chamam muito a atenção.
Com o crescimento de ideologias xenófobas e racistas em muitos países, qual é o impacto dessas tendências na formulação de políticas migratórias e na proteção dos direitos dos refugiados e imigrantes?
Olha só que maluquice essa história, não é só quando essas pessoas chegam ao poder que eles têm um impacto. O impacto deles também está quando ameaçam a direita tradicional, conservadora-democrática, e nas eleições. Então, vamos dar um exemplo: a extrema-direita francesa concorre contra a direita francesa pelos votos conservadores. O que tem acontecido? Não só a direita tem medo da extrema-direita, de perder lugar – isso pode acontecer e já vem acontecendo em alguns países; no Brasil, foi isso que aconteceu, o que desmoronou foi a direita. E, por que eu estou explicando isso? O que faz a direita? “Opa! Estamos perdendo votos para aqueles caras porque os eleitores estão preocupados com a imigração. Então, vamos incorporar um pouco das políticas, ou pelo menos um pouco das narrativas da extrema-direita em nossos programas!”. Então, o que está acontecendo é que apesar da extrema-direita não chegar ao poder, as suas ideias chegam e acabam contaminando e pressionando os outros partidos a adotar as mesmas medidas. Então, mesmo sem chegar ao poder, muitas das ideias da extrema-direita já contaminaram a direita tradicional-democrática. Fala-se muito mais no controle do Mar Mediterrâneo, na necessidade de expulsar aqueles que estão ilegalmente em nossos países. Fala-se muito mais “Nós não estamos mais aguentando o volume de refugiados. Nós não temos como lidar com esse volume de refugiados.” Então, a narrativa não tem sido do acolhimento, mas da proteção, da soberania, de proteger os nossos nacionais contra esses estrangeiros que estão nos invadindo. Se têm países que estão, ou deveriam estar, preocupados com isso, são: Paquistão, Turquia, Líbano, Colômbia, Equador etc. Esses países poderiam falar “Estamos sendo invadidos”. A Dinamarca não tem como dizer isso. “Ah, mas agora tem uma outra população e a situação demográfica mudou…” Certamente. Não é menosprezar e dizer que isso não é um tema, é claro que é um tema, mas precisa colocar num contexto. O que tem sido uma questão muito permanente nos últimos 20 anos é a instrumentalização da questão migratória e da questão dos refugiados para ganhar votos. É uma manipulação daquele assunto, não é o assunto. É uma tentativa da extrema-direita de mobilização do seu próprio eleitorado.
Em seus artigos, você tem discutido bastante o autoritarismo e a crise das democracias modernas. Quais são as medidas para proteger e fortalecer as democracias do mundo hoje?
Esse é o grande desafio. Como socorrer as democracias dessa situação? Eu tenho algumas sugestões. A primeira delas é que a democracia chegue para todo mundo, que ela de fato exista. A democracia não existe só no dia da eleição, ela é, por exemplo, a capacidade de uma família que não tem dinheiro de ter educação; não poder pagar por uma operação, mas ter um sistema de saúde que atende e salva a vida. Isso é democracia. Não é só votar. Não adianta votar e o seu destino ser abandonado. O que é a democracia? É uma promessa de que todos nós temos em nossas mãos a capacidade de definir o nosso futuro.
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