Queria saber qual o seu sentimento vindo aqui, numa plateia majoritariamente branca, depois de tudo o que você passou, vir aqui e ver que realmente a representatividade negra é quase nula nesses ambientes mais “sofisticados”?
Bom, eu faço esse tipo de coisa desde 2004, muita gente acha que eu comecei a falar depois do episódio do Grêmio, mas desde 2004 eu faço isso. Eu vou em colégio particular, colégio público. A cada colégio particular que eu vou, consigo ir em dois ou três públicos, voluntário. Mas, eu faço muito empresa, caso de menor infrator, cadeia, presídio, ONG, tudo que é lugar… Eu vou em muito, muito lugar. Minha família tá comigo hoje porque tem duas semanas quase que eu não paro em casa, rodando. Mas é um ponto muito importante, porque tirando o continente africano, o Brasil é o país que mais tem negro no mundo, né. E você vai num restaurante, se você olha para os lados, você não vê pessoas negras, a não ser com a bandeja na mão ou na cozinha… Quando eu faço palestra nas empresas, eu sempre faço uma reflexão: “Quando vocês recebem o salário de vocês, em que momento esse dinheiro vai pra mão de uma pessoa negra? É no dono da loja de carros? Na padaria, no açougue? Da casa que você comprou? Em qual momento?”. Aí eu falo que não vale esmola e nem o manobrista. Então, a gente fala: cadê esse povo? Onde é que anda esse povo? É um fenômeno muito interessante. Por isso que eu fiz o “Brasil Tumbeiro” (Editora Mostarda) – não só pros negros, mas também para as pessoas brancas e pobres, também nas periferias – [para] mostrar que existem outras pessoas, que existe um outro caminho que não só o futebol e a música. Na época da escravidão, que era o pior período pra ser negro, tinha engenheiro, médico, advogado…Tinha de tudo. Se a gente não tivesse perdido essas referências, hoje nós teríamos um país melhor pra todo mundo. Como é que a gente quer viver num país melhor se metade da população tem que ser puxada por vocês, por nós que estamos aqui. A gente [pessoas negras] fica arrastando corrente? Não, a gente tem que dar condições melhores para todo mundo, igualdade de oportunidades. O movimento negro, a luta antirracista nunca fala de supeioridade, mas igualdade de oportunidade. Não é tirar nada de ninguém e dar pra mim, é pedir pela mesma chance de oportunidade. Mas, estar nesses ambientes, pra mim, é um momento de muita satisfação, porque têm pessoas preocupadas em melhorar não só o ambiente familiar, mas melhorar o país. […] Eu vejo uma preocupação real, porque os meus meninos passaram por isso, minha família passa por isso. Às vezes, a gente tá morando num condomínio, num lugar que não tem pessoas negras e acha que tá tudo bem, só que uma hora vão ter que sair do casulo, ir pra rua.
Tem uns meninos de Valinhos que cometeram um vacilo, um erro, um crime que dificilmente eles vão estudar aqui no Brasil, porque a fama chega antes. Aonde eles chegarem, vão ser os meninos racistas; qualquer brincadeira, qualquer gesto já é suspeito. Então, olha o prejuízo, porque todos os alunos que estão aqui e, depois na faculdade, é um investimento no futuro. Você imagina os pais das meninas que fizeram bullying com aquela moça de 40 anos, na faculdade. Pagou escola particular a vida inteira, faculdade e na “hora H” faz uma piada de mau-gosto que não cabe mais? Encerrou pra ela no Brasil. Não tem mais batizado, festa, aniversário, missa, culto, colégio, ela fica sem lugar. Então, a gente tem que ter muito cuidado, hoje, para as pessoas verem com naturalidade e não ter problemas. Não é fácil, mas tem que ter um começo. Não existe uma maneira de resolver um problema sem falar sobre ele primeiro.
Você ainda sofre atos de racismo hoje em dia?
Sim, bastante. Muitas e muitas vezes, andando numa rua, andando numa loja. E o que me deixa triste é que, às vezes, a pessoa me conhece e quer me ferir. Mas me deixa muito triste que, às vezes a pessoa não me reconhece, me trata super mal, aí depois que vê que é o Aranha, me trata super bem, exageradamente.
Você se importaria de contar o que aconteceu no jogo do Grêmio?
Não. Eu fui fazer uma decisão de Copa do Brasil, Santos x Grêmio, em Porto Alegre e desde 2004 faço esse tipo de coisa [palestras]. Sempre fui um cara do movimento Hip Hop, sempre fui atento a esse tipo de coisa, política, movimentos sociais e tudo mais. Já tinham acontecido vários episódios e eu estava no jogo do Grêmio, passando para o mundo inteiro, o time ganhando de 2×0 e eu comecei a ouvir um som e eu falei “Caramba? Será que é isso mesmo que eu tô pensando?” e eu comecei a prestar mais atenção […]. Eu virei pros repórteres e perguntei: “É isso mesmo que eu estou ouvindo? É som de macaco?”, eles não falavam nada. Nisso que eu tava falando com um repórter, eu vi uma galera me xingando e falei “Cara, filma isso”, porque eu sabia que eu tinha que ter provas, porque eu já vou falar de um episódio que aconteceu comigo e não teve provas, então… Eu falava “filma, filma” e ninguém queria filmar, ninguém virava a câmera e eu pensava: “Imagina só os meus amigos do RAP, meus amigos de periferia, as pessoas que eu conheço, todo mundo me vendo passar por isso e eu em silêncio?”. E eu fiquei pensando nisso – e o time do Santos era muito bom na época, a gente ganhando de 2×0 –, o jogo rolando e eu pensando no que eu ia fazer, e eu pensei: “Já sei, vou falar com o juiz. Eu falo com o juíz, ele fala: gente, vamos parar com esse canto. Eu fiz a minha parte, ele faz a dele”. Quando eu falei com o juiz, ele falou: “volta pro gol, que eu vou te dar um cartão agora”. Eu voltei pro gol e a galera comemorou: “Tá liberado! Aqui, é assim mesmo!”. E, aí, intensificaram-se os xingamentos. E nessas horas que uma TV de fora pegou um grupinho, mas eu seria incapaz de ouvir 8 pessoas num estádio com 40 mil pessoas, pegaram aquela galerinha, a menina xingando, que foi na onda dos amiguinhos […] e a menina que tinha menos a ver com a história, acompanhou a galera, me chamou de macaco, a câmera pegou ela “certinho” e o negócio foi para o mundo inteiro. Hoje, eu não sei nem como ela vive, se ela vive, porque ela não tem mais paz em lugar nenhum. E, até hoje, o pessoal do Grêmio tenta provar que a culpa é minha, que eu provoquei os torcedores. Uma semana depois teve um segundo jogo e foi empate, mas o torcedor do Grêmio até hoje fica chateado comigo, achando que eu desclassifiquei o time. E eu passo muitos episódios ruins com torcedores do Grêmio até hoje, por conta desse jogo, desse episódio. Eu fiz uma matéria e a TV foi investigar a torcida do Grêmio “Como é que vai ser no segundo jogo? Como será que vai ser?”, o Grêmio colocou três câmeras só pra me filmar, pra pegar um gesto meu suspeito. E a torcida do Grêmio estava discutindo no grupo do WhatsApp, do Facebook “Como é que nós vamos atacar o Aranha sem usar palavras racistas?”. Eu ouvia de tudo: bola de neve, ursão… Eu ouvi de tudo! Aí eles começaram a vaiar, ficaram o jogo inteiro me vaiando, acharam que o melhor jeito era me vaiar, ao invés de me xingar. Toda vez que eu pegava na bola era uma vaia muito pesada. Isso mostra que eles estavam convenientes com aquela situação racista que tava acontecendo.
O que você acha que a gente podia fazer diferente nas escolas para que não aconteça o que aconteceu com você quando era criança?
Eu também falo muito nas escolas sobre bullying e cabe no mesmo “cesto” do racismo. A gente quer ser respeitado e, muitas vezes, a gente não respeita as pessoas. E eu não acredito na galera mais velha, de mudar alguma coisa. Eu acredito na “rapaziadinha”, nos jovens, que vão crescer com uma mentalidade um pouco mais diferente da nossa. O racista – não só o racista, mas o violento, o cara que pratica bullying, esse cara (esse mau-elemento) –, ele precisa de duas coisas pra interagir: se sentir seguro e confortável para poder agir. Confortável no sentido de que ele vai praticar a violência dele e ninguém vai criticar, vão dar risada de estar junto, vai ficar “grandão”. E seguro, no sentido de acreditar que ninguém vai tomar uma atitude violenta contra ele.
Eu fui num jogo no Estádio de São Januário, no campo do Vasco, que fica na favela e deveria ter uns 20 ou 25 mil negros no estádio. Você imagina o camarada levantar no meio da torcida com 10 mil negros em vola pra chamar alguém de macaco? Os caras vão arremessar ele dentro do campo. Então, ele não vai fazer isso, o “valentão” sempre vai escolher o melhor momento, em que ele vai estar confortável e seguro para fazer seu ato de violência.
Então, quando a gente tira essa segurança e esse conforto do racista, do violento, da pessoa que tem essa mania ruim, ela para de agir. E como é isso? Tão tirando sarro de um cara porque ele é gordinho que nem eu, é só não abraçar a ideia. Não ri, sai de perto! Fala “Cara, você quer fazer isso? Você não pode ser meu amigo”. Então, a gente tem que ensinar as pessoas a respeitarem as outras. Acho que um dos maiores problemas que a gente tem no nosso país diz respeito a educação, não a escolar, mas de respeitar o próximo. Se você respeita as pessoas do mesmo jeito que você quer ser respeitado, você não vai ter racismo, não vai ter homofobia, gordofobia, nem nada disso. Só respeito. É bem simples. Parece muito simples, mas no futebol a gente chama de “laranja podre”, que vai estragando o grupo. Eu gravei pro Profissão Repórter uma vez, lá em 2017, e a polícia federal fez um levantamento de que existem cerca de 150 grupos nazistas em atividade no Brasil e, hoje, nós estamos chegando em 300. Quer dizer, a outra turma tá se movimentando, tá crescendo. Então, se a gente não criar um movimento contrário, eles só vão crescer e influenciar cada vez mais. A gente já viu fazerem ataques em escolas, estamos preocupados com as crianças nas escolas, porque uma hora a violência chega na nossa porta.
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